POR HOJE NÃO

Hoje eu não quero acordar quando o despertador tocar, quero levantar antes de o sol nascer com as minhas ânsias e desejos de ver o dia raiar. Hoje não quero me preocupar com o trabalho mesmo sem ser domingo, quero sentar na poltrona da sala de frente para a vidraça e devorar um livro atrás do outro. Hoje não quero limites, nem regras, nem tradições. Hoje eu quero estar, quero reaprender uma vida que outrora fora minha e agora é abandono.

Hoje eu não quero ter mais um dia rumo ao adulto que o futuro tanto me impõe, hoje eu quero é ser criança. Livrar a mente dos desafios dos quais convivo e lembrar que um dia ensolarado pode ser a maior felicidade para alguém que quer caminhar no parque. Por hoje não quero desculpas esfarrapadas, não quero trapaças mal contadas e nem fofocas do dia-a-dia. Hoje eu quero parar o moço do sorvete e pedir uma casquinha de morango com cobertura de chocolate, lambuzar o rosto e sujar as pontas do cabelo por que o vento invejoso também quer se deliciar.

Por hoje não quero risos tortos e caretas desconformadas, quero distância do que insiste em me atormentar. Hoje eu quero o sal da praia na mistura das ondas beirando a areia, quero sentir a água fria penetrando entre meus dedos e catar conchas inteiras pela beira-mar. Por hoje não quero me preocupar com o sol do meio-dia derretendo minha pele e nem com o guarda-sol que, na verdade, guarda uma sombra. Hoje eu quero pular na água ao anoitecer, nadar em companhia das estrelas e sentir o frio da brisa noturna sem me estressar com um possível resfriado futuro. 

Hoje eu quero a síntese da vida como ela deveria ser, não como ela é. Quero crescer e ser criança num dia só, quero ser velha sentada numa cadeira de balanço e fazer tricô para um neto que ainda nem tenho. Quero pular amarelinha com uma pedrinha da calçada e voltar ao adulto que ando sendo só amanhã. Hoje eu não quero afazeres, quero ser mais sábia na velhice precoce ou mais livre na criança atrasada. Por hoje não quero ser presente, por hoje não quero só sobreviver.