Vamos fingir que tudo está completamente bem. Que o dia nublado continua sendo sinônimo de brincar e ver formas aleatórias nas nuvens de algodão. Vamos fingir que a multidão não sufoca, o piscar das luzes não desfoca a visão e a música alta é totalmente agradável aos ouvidos. Que a ardência que desce seca na garganta, depois de um gole amargo é mais gostosa que o gelar dos dentes num picolé caseiro feito com suco de saquinho. Que palhaços ainda tem as piadas mais engraçadas e maça do amor é apenas uma fruta com cobertura doce e não uma metáfora sentimental.
Vamos fingir que ser gente grande é divertido. Que aguentar o chefe mal humorado é melhor que suportar tomar banho quente depois de ralar os joelhos. Que a demorada fila do banco é muito mais divertida que a ansiedade que fica ao esperar para entrar no carrinho bate-bate. Vamos fingir que as contas são divertidas, que ambientes para fumantes não são sufocantes, que o gosto da cerveja é docinho e que bares não são oceanos para afogar mágoas. Porque afinal, basta fingir que está tudo bem e as únicas mágoas serão ter que parar de comer balas e escovar os dentes ou dormir cedinho para ver desenho animado no outro dia pela manhã.
Vamos fazer de conta que enfrentar dificuldades é como a pedrinha na amarelinha que é preciso pular numa perna só para ultrapassar e que nem o céu é o limite, porque não há limites para a criatividade. Que coração partido se cola com super bonder, que nossos pedaços são quebra-cabeças com peças faltando, mas que perder elas por aí não é tão importante quanto imaginar o que falta na figura e bagunçar tudo de novo.
Vamos brincar que a vida é faz de conta, que fadas com suas varinhas mágicas vão trazer de volta aqueles que partiram. Que pessoas imortais existem e bruxas podem dar poções de felicidade. Que florestas guardam segredos, que piratas enterram tesouros com mapas perdidos e que não é só nos livros onde o viver é colorido. Vamos fingir que histórias infantis não são pseudo-ensinamentos para adultos, são apenas contos bonitinhos.
Vamos fechar os olhos e imaginar que é só rebobinar a fita e o lado gelado da cama vai estar preenchido novamente. Vamos fingir que o amor não cega, que o perfume não gruda e lembranças não voltam para assombrar. Que músicas não viram trilha sonora de momentos e que quando eles se vão escutar novamente é tortura. Que saudade já não tem um novo significado muito mais dolorido e perdoar não exige muito mais de si do que do outro.
Vamos fingir que a humanidade não sufoca, que padrões não são regras na nossa cabeça tola que segue inconscientemente as ditaduras camufladas. Que política é apenas show de horrores e votar não define um passo sequer da nossa trajetória, que somos independentes e liberdade não tem um significado muito mais profundo que apenas a definição denotativa. Que o trânsito trancado é tão reconfortante quanto andar de patinete ou bicicleta no parque e o cheiro de diesel queimado é dez vezes melhor que o aroma das flores que te fazem ter crises de espirros.
Vamos fingir que está tudo bem, que crescer é divertido e que daqui em diante só melhora. Vamos deitar a cabeça no travesseiro e mais uma vez preencher o sono de nostalgia, fechar os olhos e doer no peito a certeza de que o que resta é o passo a frente e que o que ficou foi apenas o início do fim.
"Vamos deitar a cabeça no travesseiro e mais uma vez preencher o sono de nostalgia, fechar os olhos e doer no peito a certeza de que o que resta é o passo a frente e que o que ficou foi apenas o início do fim." Eu tô desestruturada
ResponderExcluirQue texto lindo! Parece que estava lendo meus pensamentos há um tempo atrás, quando tinha medo de me tornar uma adulta. Sua escrita passa os sentimentos de uma forma muito real, estou encantada, de verade!!!
Obrigada por compartilhar sua arte! <3
Com carinho,
Yasmin Brussulo
www.entremcc.blogspot.com