12 fevereiro 2016

TALVEZ, MOÇO

Sabe moço, talvez eu devesse sair para tomar um ar hoje a noite, o céu está tão bonito e a lua crescente não ofusca as estrelas. Talvez eu devesse tomar uma dose de whisky e sair perambulando pelas ruas como nunca fiz, como nunca nem tive vontade fazer. Talvez eu simplesmente devesse me tornar menos eu para me descobrir um pouco. Levantei da cama hoje e era domingo, o despertador não tocou, não sai fazer uma caminhada matinal e nem tomei um café amargo logo cedo. Arrumei o quarto, tirei o pó, limpei os resquícios de sujeira que ainda restavam aqui dentro.

Limpei tudo tão bem que acabei me apagando de mim, esqueci quem eu era e quais motivos me mantinham lutando todo dia por algum espaço. Talvez eu devesse ler um livro erótico porque nunca fui fã e nem tentei algo assim. Talvez eu devesse aceitar a escrita do Paulo Coelho tal como ela é sem pré conceitos. Talvez eu até passasse a odiar Clarice Lispector por saber decifrar todo e qualquer sentimento meu. Talvez eu andasse pelo parque do bairro descalça e de pijamas sem me importar com os olhares alheios. Talvez eu até cumprimentasse aquele mal humorado do porteiro sem me importar com a cara feia.

Talvez, mas só talvez eu dançasse em baixo de uma tempestade, borrasse o rímel e estragasse o celular que não é à prova d'água. Ou talvez nem rímel eu passasse. Talvez eu deixasse de guardar dinheiro e desperdiçasse meu potinho de moedas de um real em balas no mercadinho da esquina. Talvez eu devesse dormir menos, procrastinar menos e comer tudo o que eu sentir vontade. Talvez essa não seja eu. Quem sabe esquecer de mim me transforme em outro alguém, mas talvez eu goste de não usar minha pele por um dia.

Talvez eu devesse pular carnaval fora de época e fazer aquelas dancinhas ridículas coreografadas pelos artistas sertanejos num festival aleatório. Talvez eu devesse sorrir mais, sem medo de mostrar os dentes, sem medo de me sentir feliz. Talvez ou quem sabe um dia eu devesse pegar o carro e sair sem rumo por aí, sem GPS, sem local fixo. Talvez eu levasse uma barraca, um lampião à querosene e um livro na mala. Talvez, mas só talvez eu ainda tenha coragem para fazer tudo isso.

Tomei um laxante para limpar o organismo e limpei quem eu era por dentro. Deixei ir meu eu solitário, meu eu embaraço, meu eu meio tartaruga lerda dentro do casco. Talvez tenha deixado meu passado escorrer pelos dedos das mãos também, ainda não sei certo. Talvez eu devesse é parar de pensar tanto no futuro e aprender a me aventurar no presente. Talvez eu devesse é deixar minha cabeça aprisionada e meu coração um pouco mais livre. Talvez moço, mas só talvez um dia eu realmente me dispa de mim. 

14 comentários:

  1. Talvez tenha deixado meu passado escorrer pelos dedos das mãos também, ainda não sei certo.

    WOW que texto. Se despir de si mesma, acredito eu, é uma das maiores dificuldades humanas. Como julgar? É difícil demais abrir mão da gente, das manias, dos medos, dos anseios.

    Adorei!

    Beijos,
    Mafê.

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    1. Que bom que gostou flor!
      Realmente se despir de si mesma, abrir um caminho na floresta fechada que somos é algo difícil, mas também libertador! ♥

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  2. "Talvez, mas só talvez eu dançasse em baixo de uma tempestade, borrasse o rímel e estragasse o celular que não é à prova d'água. Ou talvez nem rímel eu passasse. Talvez eu deixasse de guardar dinheiro e desperdiçasse meu potinho de moedas de um real em balas no mercadinho da esquina. Talvez eu devesse dormir menos, procrastinar menos e comer tudo o que eu sentir vontade. Talvez essa não seja eu." Poxa, adorei o texto, sem mais ♥ Ficou lindo e me senti descrita aí. As vezes a gente precisa mesmo se perder para se encontrar.

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    1. Tão bom ver que se identificou de alguma forma.
      Muito obrigada, mesmo! ♥

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  3. Quem texto maravilhoso, fiquei admirada! A frase: "Talvez eu devesse é parar de pensar tanto no futuro e aprender a me aventurar no presente" me inspirou!
    Muito bom! :)

    Beijos, Mibu!

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  4. Boa tarde,
    Como vai?
    Nossa,que texto intenso.
    Não estou mentindo se dizer que uma lagrima escorreu quando eu li.
    Eu entendo a personagem,meu blog não desmente isso.

    Amei este trecho
    "Quem sabe esquecer de mim me transforme em outro alguém, mas talvez eu goste de não usar minha pele por um dia"

    Beijos e tenha um excelente final de semana
    www.rimasdopreto.com

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    1. Oi, estou bem e você?
      Fico feliz em saber que de alguma forma o texto te tocou.
      Muito obrigada! ♥

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  5. Que texto lindo, me senti um tantinho na pele da personagem. "Talvez eu simplesmente devesse me tornar menos eu para me descobrir um pouco". É tão difícil a gente se libertar de nós mesmos, de sermos diferentes do que somos. Nos habituamos com a nossa rotina e temos medo da mudança, mas às vezes ela faz um bem danado ♥ Amei!

    Beijos :)

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    1. Realmente, mudar liberta a alma. É sempre bom revermos nossas atitudes e mudarmos quando necessário. Fico feliz em saber que gostou e que se identificou Mari! ♥

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  6. "Talvez eu simplesmente devesse me tornar menos eu para me descobrir um pouco." Apaixonada por esse verso... Ah, pelo texto todo!

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  7. Primeiro
    Eu não sei como você consegue escrever tantos textos por tantos dias e todos continuarem sempre maravilhosos.
    Segundo lugar
    Vou roubar pra mim porque me vi em cada pedaço.
    Presa ao passado
    Querendo arriscar, fugir, estar em outra pele...
    Texto lindo ♥ To sem palavras!
    Mil beijos ♥

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    1. Não sei como você consegue me deixar sem palavras a cada novo comentário! ♥
      Muito obrigada Beca, mesmo!

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